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Olhos vendados

"As pessoas de olhos vendados são igualmente cegas às pessoas que perderam a visão pelas mais variadas formas e maneiras, de causas patológicas ou acidentais? Se admitirmos a tese, ainda tão ventilada e não rara aceita, de que o simples fato de vendar os olhos proporciona as mesmas experiências que vivem as pessoas cegas, teríamos também que admitir, de forma assim tão simplista, que, de fato, bastaria àquelas pessoas que realmente perderam a visão apenas fazer de conta que estão cegas, e tudo estaria definitivamente resolvido no seu aparato psíquico, sem maiores consequências e reflexos negativos na sua vida prática cotidiana.

Ora, nem de longe e nem de perto, a experiência do vendamento dos olhos dá conta, consegue traduzir ou explicar aquilo que realmente acontece com quem perde a visão. Tanto isso é verdadeiro que as pessoas somente aceitam a ideia da experiência do vendamento dos olhos ou de fechá-los por alguns instantes porque elas sabem que tudo não passa de uma mera brincadeira; uma vez retirada a venda ou aberto os olhos, tudo volta exatamente a ser visto como era antes. Trata-se, portanto, de uma brincadeira ou de uma experiência negativa do ponto de vista educativo porque, ao contrário do que comumente pensamos, elas transmitem a falsa ideia de que cegueira é algo profundamente negativo. Do mesmo modo que eu, em particular, não faço nenhuma apologia à cegueira - e muito menos acho que seja uma dádiva -, mas também não estou entre aqueles que acreditam que ela seja uma desgraça.

A possibilidade da cegueira existe no mundo natural e no mundo social. Tanto quanto ninguém está totalmente livre da cegueira, ninguém também está livre da morte - aliás, da morte é que ninguém está definitivamente liberto. Entretanto, o medo de se ficar cego é tanto que o vendamento dos olhos só pode ser admitido porque ele se situa no campo da brincadeira. Se o vendar dos olhos oferecesse algum risco real de as pessoas perderem a visão, por certo ninguém estaria brincando com coisa séria.

Sei que muito provavelmente serei contestado por minha argumentação, principalmente por aqueles que gostam de promover espetáculos utilizando-se da ideia do vendamento em momentos específicos. Conheço pessoas que usam tal expediente agindo de boa fé, mas esta prática reforça valores tão velhos que muito pouco ou nada contribuem com a formação de pessoas com menos preconceitos contra a cegueira e contra as pessoas cegas. É preciso deixar definitivamente claro que existe uma enorme diferença entre brincar de ser cego com os olhos vendados e a dura realidade de uma cegueira, sobretudo,  numa sociedade como a nossa, profundamente marcada pelo uso da visão como sentido "superior". Não sei nem mesmo se a visão é o principal sentido entre todos os sentidos sensoriais. Como sou alguém que já enxergou muito bem e passou por diversas fases de perda gradativa da visão até ficar cego definitivamente, posso dizer que as pessoas cegas podem desenvolver todas as aptidões superiores humanas. Todos os estudos e pesquisas já realizados por diversos e importantes estudiosos e especialistas no assunto demonstram, de forma cabal e inequívoca, que a cegueira inibe ou dificulta, mas não impede o pleno desenvolvimento das aptidões superiores. O que pode impedir o pleno desenvolvimento das aptidões espirituais, aqui compreendidas como consciência, pensamento, linguagem, fala, memória, ou seja a formação dos conceitos mais complexos, definitivamente não é a cegueira, se não práticas educacionais, sociais e culturais segregativas, compreensções religiosas equivocadas entre tantas outras que procuram fazer da cegueira uma desgraça e das pessoas cegas seres tão diferentes, de sorte que elas acabam sendo transformadas em pessoas supostamente de outro "mundo".

É justamente dessas compreensões equivocadas, folclóricas, mitológicas ou esotéricas que, ao longo da história da humanidade, foram aparecendo expressões culturais como o "mundo das pessoas cegas", a "psicologia das pessoas cegas". Admito a tese que aponta que pessoas cegas possuem particularidades psicológicas que precisam ser observadas pelas pessoas videntes, porém, rejeito toda e qualquer tese que procure negar ou enfatizar que as vias do desenvolvimento das pessoas cegas não são, por conseguinte, as mesmas vias do desenvolvimento das pessoas que enxergam.

Feitas essas considerações preliminares, não rejeito de tudo a prática do vendamento dos olhos como exercício que busca transmitir algumas noções sobre as experiências vividas pelas pessoas cegas. Contudo, para que este exercício surta o efeito realmente desejado, é necessário que a complexidade social e psicológica que cerca a vida real das pessoas cegas seja problematizada a partir de pressupostos científicos ancorados em estudos e pesquisas sérias. Do contrário, continuaremos apenas estimulando a simples reprodução de velhas práticas que de nada contribuirão com a retirada das pessoas cegas da sua histórica condição "fantasmagórica". Pessoas cegas são simplesmente pessoas cegas. Qualquer outra elucubração além disso fica por conta dos preconceitos e das compreensões equivocadas de cada um, de acordo com suas crenças e valores".

Enio Rodrigues da Rosa

Mestre em Educação e especialista em Educação Especial, diretor do IPC

 

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